A  MINHA  ALMA  GLORIFICA  O  SENHOR
POESIA DE TEMA RELIGIOSO

Sá de Miranda


 

CANÇÃO A NOSSA SENHORA

Virgem fermosa, que achastes a graça
perdida antes por Eva, onde não chega
o fraco entendimento, chegue a fé.

Coitada desta nossa vista cega,
que anda apalpando pela névoa baça,
e busca o que ante si tendo não vê.

Sem saber atinar como, ou porquê,
entrei pelos perigos,
rodeado de imigos;
por piedade a vós venho, e por mercê.

Vós, que nos destes claro a tanto escuro,
remédio a tanta míngua,
me dareis língua e coração seguro.

               

Virgem toda sem mágoa, inteira e pura,
sem sombra nem daquela culpa, herdada
por todos nós, té o fim desde o começo
claridade do sol nunca turbada,
santíssima e perfeita creatura,
ante quem de mim fujo e me aborreço:
Hei medo a quanto fiz, sei que mereço,
dos meus erros me espanto,
que m'aprouveram tanto,
agora à só lembrança desfaleço;
mas lembra-me porém que vós fizestes
paz entre Deus e nós,
e a quem por vós chamou, sempre a mão destes.

 

Virgem, seguro porto, emparo e abrigo
às mores tempestades, ah! que tinha
aos ventos esta vida encomendada,
sem olhar já a que parte ia ou vinha,
descuidado de mim e do perigo,
surdo aos conselhos, tudo tendo em nada!

Não vos seja em desprezo esta coitada
alma, que ante vós vem
c'os receos que tem,
de imigos grandes mal ameaçada;
e que eu tam pecador e errado seja,
vença vossa bondade
minha maldade grande, e assi sobeja.

 

Virgem, do mar estrela, e neste lago
e nesta noite um faro, que nos guia
pêra o porto, antes claro e certo Norte.

Quem sem vós atinar, quem poderia
abrir somente os olhos, vendo o estrago
que atrás olhando deixa feito a Morte?

Quem me daria proa com que corte
por tam brava tormenta?

De toda parte venta,
de toda espanta o tempo feo e forte;
mas tudo que será? co'a vossa ajuda
névoa d'alagoa,
que ao vento voa, e num momento a muda!

 

Virgem perfeita, e do Sacrário santo
porta que Ezequiel cerrada via,
à parte que responde ò Oriente;
alto silvado, que todo ele ardia
sem ofendido ser tanto nem quanto,
e foi tal testemunha ali presente;
velo de Gedeão, divinamente,
e divino sinal
do orvalho celestial,
que, tudo o mais enxuto, ele só sente:
Senhora, que podeis, em tal afronta
restituí-me a mim,
antes do fim, que o sol vai-se e trasmonta.

 

Virgem e madre juntamente: quem
tal nunca ouviu? Nem dantes nem depois,
somente em vós então quem o entendeu?

Vós madre e filha, vós esposa sois
daquele que apertado ao peito tem
vossos braços — o que não pode o Céu!

Na vossa alta humildade se venceu
o soberbo tirano,
que com enveja e engano
nos fez tam perigosa e longa guerra;
por mulher se causou tal dano nosso;
quem vos restituiu
de vós saiu, Senhora, o preço é vosso.

 

Virgem, nossa esperança, um alto poço
de vivas águas, que contino corre,
em que se matam pêra sempre as sedes;
não de Nembrot, mas de David a torre,
donde socorro espero ao meu destroço,
assi tam perseguido como vedes;
d'antre tam altas, tam grossas paredes,
de ferro carregado,
um coração coitado
chama por vós envolto em bastas redes,
úas sobre outras; porém sinais tenho
ser do vosso bando,
que a vós bradando por piedade venho.

 

Virgem do sol vestida, e nos seus raios
claros envolta toda, e das estrelas
coroada, e debaix'os pés a lua,
são vindas minhas culpas e querelas
sobre mim, tantas! Valei-me aos desmaios;
de muitas, que possa ir chorando algúa.

Não me deixaram desculpa nenhúa
os meus erros sobejos,
levaram-me os desejos
tantas ocasiões, indo úa e úa;
quem tormenta passou per toda a praia,
com os ventos contrastando,
saia nadando já co'a vida, e saia!

 

Virgem, horto precioso, alto e defeso,
rico ramo do tronco de Jessé,
que floreceu tam milagrosamente,
custódia preciosíssima da Fé,
que vós só toda tivestes em peso,
tendo um e o outro Sol sua luz ausente.
A alma que os seus enganos tarde sente,
altíssima Senhora,
por vós suspira e chora;
ontem minino, sou velho ao presente,
de dia em dia vou-me, d'ano em ano,
à minha fim chegando,
dissimulando a vergonha e o dano.

 

Virgem andando aqui, já celestial,
e em corpo assi levada ao Céu empíreo,
sem ser vista mais cá de olhos humanos,
certa porta do Céu, dos vales lírio,
que nunca teve nem terá igual,
dada por só remédio a nossos danos
contra os demónios, sejam meridianos,
sejam da noite escura;
esperança segura
tais forças: contra tais mestres d enganos,
com vosso esforço por terra e por mar,
não digo eu haver medo,
mas sair ao campo, ledo, e pelejar.

 

Virgem das Virgens, como o tempo voa!
Nossa certa esperança,
por toda a vezinhança
quanto gemido a toda a parte soa!

Quantas lágrimas caem mal derramadas!
Mas, postos de giolhos,
a vós os olhos, tudo o mais são nadas.

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