A  MINHA  ALMA  GLORIFICA  O  SENHOR
POESIA DE TEMA RELIGIOSO

Luís de Camões
...

A Máquina do Mundo

(Os Lusíadas, canto X, est. 80-86)

 

Vês aqui a grande máquina do Mundo,

Etérea e elemental, que fabricada

Assi foi do Saber, alto e profundo,

Que é sem princípio e meta limitada.

Quem cerca em derredor este rotundo

Globo e sua superfícia tão limada,

É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,

Que a tanto o engenho humano não se estende.

 

Este orbe que, primeiro, vai cercando

Os outros mais pequenos que em si tem,

Que está com luz tão clara radiando

Que a vista cega e a mente vil também,

Empíreo se nomeia, onde logrando

Puras almas estão daquele Bem

Tamanho, que ele só se entende e alcança,

De quem não há no mundo semelhança.

 

Aqui, só verdadeiros, gloriosos

Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,

Júpiter, Juno, fomos fabulosos,

Fingidos de mortal e cego engano.

Só pera fazer versos deleitosos

Servimos; e, se mais o trato humano

Nos pode dar, é só que o nome nosso

Nestas estrelas pôs o engenho vosso.

 

E também, porque a santa Providência,

Que em Júpiter aqui se representa,

Por espíritos mil que têm prudência

Governa o Mundo todo que sustenta

(Ensina-lo a profética ciência,

Em muitos dos exemplos que apresenta);

Os que são bons, guiando, favorecem,

Os maus, em quanto podem, nos empecem;

 

Quer logo aqui a pintura que varia

Agora deleitando, ora ensinando,

Dar-lhe nomes que a antiga Poesia

A seus Deuses já dera, tabulando;

Que os Anjos de celeste companhia

Deuses o sacro verso está chamando,

Nem nega que esse nome preminente

Também aos maus se dá, mas falsamente.

 

Enfim que o Sumo Deus, que por segundas

Causas obra no Mundo, tudo manda.

E tornando a contar-te das profundas

Obras da Mão Divina veneranda,

Debaxo deste círculo onde as mundas

Almas divinas gozam, que não anda,

Outro corre, tão leve e tão ligeiro

Que não se enxerga: é o Móbile primeiro.

 

Com este rapto e grande movimento

Vão todos os que dentro tem no seio;

Por obra deste, o Sol, andando a tento,

O dia e noite faz, com curso alheio.

Debaxo deste leve, anda outro lento,

Tão lento e sojugado a duro freio,

Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,

Duzentos cursos faz, dá ele um passo.

 

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