A  MINHA  ALMA  GLORIFICA  O  SENHOR
POESIA DE TEMA RELIGIOSO

Luís de Camões
...

 

 

Babel e Sião

Redondilhas

 

1 Sôbolos rios que vão 

Por Babilónia, me achei,  

Onde sentado chorei 

As lembranças de Sião 

E quanto nela passei.  

 

2 Ali, o rio corrente 

De meus olhos foi manado;  

E, tudo bem comparado,  

Babilónia ao mal presente,  

Sião ao tempo passado.  

 

3 Ali, lembranças contentes 

Na alma se representaram;  

E minhas cousas ausentes 

Se fizeram tão presentes 

Como se nunca passaram.  

 

4 Ali, depois de acordado,  

Co rosto banhado em água,  

Deste sonho imaginado,  

Vi que todo o bem passado 

Não é gosto, mas é mágoa.  

 

5 E vi que todos os danos 

Se causavam das mudanças 

e as mudanças dos anos;

Onde vi quantos enganos 

Faz o tempo às esperanças.  

 

6 Ali vi o maior bem 

Quão pouco espaço que dura;

O mal que depressa vem,  

E quão triste estado tem  

Quem se fia da ventura.  

 

7 Vi aquilo que mais vale,  

Que então se entende milhor,  

Quando mais perdido for;  

Vi ao bem suceder mal 

E, ao mal, muito pior.  

 

8 E vi com muito trabalho 

Comprar arrependimento;  

Vi nenhum contentamento,  

E vejo-me a mim, que espalho 

Tristes palavras ao vento.  

 

9 Bem são rios estas águas 

Com que banho este papel;  

Bem parece ser cruel 

Variedade de mágoas 

E confusão de Babel.  

 

10 Como homem que, por exemplo,  

Dos transes em que se achou,  

Despois que a guerra deixou,  

Pelas paredes do templo 

Suas armas pendurou:  

 

11 Assim, depois que assentei 

Que tudo o tempo gastava,  

Da tristeza que tomei,  

Nos salgueiros pendurei 

Os órgãos com que cantava.  

 

12 Aquele instrumento ledo 

Deixei da vida passada,  

Dizendo: — Música amada,  

Deixo-vos neste arvoredo,  

À memória consagrada.  

 

13 Frauta minha que, tangendo,  

Os montes fazíeis vir 

Pra onde estáveis correndo,  

E as águas, que iam descendo,  

Tornavam logo a subir,  

 

14 Jamais vos não ouvirão 

Os tigres, que se amansavam;  

E as ovelhas que pastavam,  

Das ervas se fartarão 

Que por vos ouvir deixavam.  

 

15 Já não fareis docemente 

Em rosa tornar abrolhos 

Na ribeira florescente;  

Nem poreis freio à corrente,  

E mais se for dos meus olhos.  

 

16 Não movereis a espessura,  

Nem podereis já trazer 

Atrás de vós a fonte pura,  

Pois não pudestes mover 

Desconcertos da ventura.  

 

17 Ficareis oferecida 

À Fama, que sempre vela,  

Frauta de mim tão querida;  

Porque, mudando-se a vida,  

Se mudam os gostos dela.  

 

18 Acha a tenra mocidade 

Prazeres acomodados,  

E logo a maior idade 

Já sente por pouquidade 

Aqueles gostos passados.  

 

19 Um gosto que hoje se alcança,  

Amanhã já o não vejo:  

Assim nos traz a mudança 

De esperança em esperança 

E de desejo em desejo.  

 

20 Mas, em vida tão escassa,  

Que esperança será forte?  

Fraqueza de humana sorte,  

Que quanto da vida passa 

Está recitando a morte!  

 

21 Mas deixar nesta espessura 

O canto da mocidade!  

Não cuide a gente futura 

Que será obra da idade 

22 O que é força da ventura.  

 

23 Que idade, tempo, o espanto 

De ver quão ligeiro passe,  

Nunca em mim puderam tanto,  

Que, posto que deixe o canto,   

A causa dele deixasse.  

 

24 Mas em tristezas e nojos,  

Em gosto e contentamento,  

Por sol, por neve, por vento,  

Tendré presente á los ojos  

Por quien muero tan contento.  

 

25 Órgãos e frauta deixava,  

Despojo meu tão querido,  

No salgueiro que ali estava,  

Que pera troféu ficava 

De quem me tinha vencido.  

 

26 Mas lembranças da afeição 

Que ali cativo me tinha,  

Me perguntaram então:  

Que era da música minha 

Que eu cantava em Sião?  

 

27 Que foi daquele cantar 

Das gentes tão celebrado?  

Porque o deixava de usar?  

Pois sempre ajuda a passar 

Qualquer trabalho passado.  

 

28 Canta o caminhante ledo 

No caminho trabalhoso,  

Por entre o espesso arvoredo;  

E de noite o temeroso,  

Cantando, refreia o medo.  

 

29 Canta o preso docemente,  

Os duros grilhões tocando;  

Canta o segador contente,  

E o trabalhador, cantando,  

O trabalho menos sente.  

 

30 Eu, que estas cousas senti 

Na alma, de mágoas tão cheia,  

Como dirá, respondi,  

Quem alheio está de si 

Doce canto em terra alheia?  

 

31 Como poderá cantar 

Quem em choro banha o peito?  

Porque, se quem trabalhar 

Canta por menos cansar,  

Eu só descansos enjeito.  

 

32 Que não parece razão 

Nem parece cousa idónea,  

Por abrandar a paixão,  

Que cantasse em Babilónia 

As cantigas de Sião.  

 

33 Que, quando a muita graveza 

De saudade quebrante 

Esta vital fortaleza,  

Antes moura de tristeza  

Que, por abrandá-la, cante.  

 

34 Que, se o fino pensamento 

Só na tristeza consiste,  

Não tenho medo ao tormento:  

Que morrer de puro triste,  

Que maior contentamento?  

 

35 Nem na frauta cantarei 

O que passo e passei já,  

Nem menos o escreverei;  

Porque a pena cansará 

E eu não descansarei.  

 

36 Que, se a vida tão pequena 

Se acrescenta em terra estranha,  

E se Amor assim o ordena,  

Razão é que canse a pena 

De escrever pena tamanha.  

 

37 Porém se, pera assentar 

O que sente o coração,  

A pena já me cansar,  

Não canse pera voar 

A memória em Sião.  

 

38 Terra bem-aventurada,  

Se, por algum movimento,  

Da alma me fores mudada,  

Minha pena seja dada 

A perpétuo esquecimento.  

 

39 A pena deste desterro,  

Que eu mais desejo esculpida 

Em pedra ou em duro ferro,  

Essa nunca seja ouvida,  

Em castigo do meu erro.  

 

40 E se eu cantar quiser,  

Em Babilónia sujeito,  

Hierusalém, sem te ver,  

A voz, quando a mover,  

Se me congele no peito.  

 

41 A minha língua se apegue 

Às fauces, pois te perdi,  

Se, enquanto viver assi,  

Houver tempo em que te negue 

Ou que me esqueça de ti!  

 

42 Mas, ó tu, terra de Glória,  

Se eu nunca vi tua essência,  

Como me lembras na ausência?  

Não me lembras na memória,  

Senão na reminiscência.  

 

43 Que a alma é tábua rasa 

Que com a escrita doutrina 

Celeste tanto imagina,  

Que voa da própria casa 

E sobe à Pátria divina.  

 

44 Não é logo a saudade 

Das terras onde nasceu 

A carne, mas é do Céu,  

Daquela santa Cidade 

De onde esta alma descendeu.  

 

45 E aquela humana figura,  

Que cá me pôde alterar,  

Não é quem se há-de buscar:  

É o raio da Fermosura 

Que só se deve de amar.  

 

46 Que os olhos e a luz que ateia 

O fogo que cá sujeita,  

— Não do sol, mas da candeia — 

É sombra daquela ideia 

Que em Deus está mais perfeita.  

 

47 E os que cá me cativaram 

São poderosos afeitos 

Que os corações têm sujeitos;  

Sofistas que me ensinaram 

Maus caminhos por direitos.  

 

48 Destes o mando tirano 

Me obriga, com desatino,  

A cantar, ao som do dano,  

Cantares de amor profano 

Por versos de amor divino.  

 

49 Mas eu, lustrado co santo 

Raio, na terra de dor,  

De confusão e de espanto,  

Como hei-de cantar o canto 

Que só se deve ao Senhor?  

 

50 Tanto pode o benefício 

Da Graça, que dá saúde,  

Que ordena que a vida mude:  

E o que eu tomei por vício 

Me faz grau pera a virtude.  

 

51 E faz que este natural 

Amor, que tanto se preza,  

Suba da sombra ao real,  

Da particular beleza 

Pera a Beleza geral.  

 

52 Fique logo pendurada 

A frauta com que tangi,  

Ó Hierusalém sagrada,  

E tome a lira dourada 

Pera só cantar de ti;  

 

53 Não cativo e ferrolhado 

Na Babilónia infernal,  

Mas dos vícios desatado 

E cá desta a ti levado,  

Pátria minha natural.  

 

54 E se eu mais der a cerviz 

A mundanos acidentes,  

Duros, tiranos e urgentes,  

Risque-se quanto já fiz 

Do grão livro dos viventes.  

 

55 E, tomando já na mão 

A lira santa e capaz 

Doutra mais alta invenção,  

Cale-se esta confusão,  

Cante-se a visão da paz!  

 

56 Ouça-me o pastor e o rei,  

Retumbe este acento santo,  

Mova-se no mudo espanto;  

Que do que já mal cantei 

A palinódia já canto.  

 

57 A vós só me quero ir,  

Senhor e grão Capitão 

Da alta torre de Sião,  

À qual não posso subir,  

Se me vós não dais a mão.  

 

58 No grão dia singular 

Que na lira o douto som 

Hierusalém celebrar,  

Lembrai-vos de castigas 

Os ruins filhos de Edom.  

 

59 Aqueles que tintos vão 

No pobre sangue inocente,  

Soberbos co poder vão,  

Arrasai-os igualmente,  

Conheçam que humanos são.  

 

60 E aquele poder tão duro 

Dos afeitos com que venho,  

Que incendem a alma e engenho;  

Que já me entraram o muro 

Do livre alvídrio que tenho;  

 

61 Estes, que tão furiosos 

Gritando vêm a escalar-me,  

Maus espíritos danosos,   

Que querem como forçosos 

Do alicerce derrubar-me,  

 

62 Derrubai-os, fiquem sós,  

De forças fracos, imbeles;  

Porque não podemos nós 

Nem com eles ir a Vós,  

Nem sem Vós tirar-nos deles.  

 

63 Não basta minha fraqueza 

Pera me dar defensão,  

Se Vós, santo Capitão,  

Nesta minha fortaleza 

Não puserdes guarnição.  

 

64 E tu, ó carne que encantas,  

Filha de Babel tão feia,  

Toda de misérias cheia,  

Que mil vezes te levantas 

Contra quem te senhoreia,  

 

65 Beato só pode ser 

Quem com a ajuda celeste 

Contra ti prevalecer,  

E te vier a fazer 

O mal que lhe tu fizeste;  

 

66 Quem com disciplina crua 

Se fere mais que uma vez,  

Cuja alma, de vícios nua, 

Faz nódoas na carne sua,  

Que já a carne na alma fez 

 

67 E beato quem tomar  

Seus pensamentos recentes 

E em nascendo os afogar,  

Por não virem a parar 

Em vícios graves e urgentes;  

 

68 Quem com eles logo der 

Na pedra do furor santo 

E, batendo, os desfizer 

Na Pedra, que veio a ser 

Enfim cabeça do Canto;  

 

69 Quem logo, quando imagina 

Nos vícios da carne má,  

Os pensamentos declina 

Àquela carne divina 

Que na Cruz esteve já;  

 

70 Quem do vil contentamento 

Cá deste mundo visível,  

Quanto ao homem for possível,  

Passar logo o entendimento 

Pera o mundo inteligível,  

 

71 Ali achará alegria 

Em tudo perfeita e cheia 

De tão suave harmonia,  

Que nem, por pouca, escasseia,  

Nem, por sobeja, enfastia.  

 

72 Ali verá tão profundo 

Mistério na suma Alteza,  

Que, vencida a Natureza,  

Os mores faustos do Mundo 

Julgue por maior baixeza.  

 

73 Ó tu, divino aposento,  

Minha Pátria singular,  

Se só com te imaginar 

Tanto sobe o entendimento,  

Que fará, se em ti se achar?  

 

74 Ditoso de quem se partir 

Pera ti, terra excelente,  

Tão justo e tão penitente,  

Que, despois de a ti subir,  

Lá descanse eternamente!  

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