Canto
Laus et gloria sit tibi, sancta Trinitas, quae omnes
nos ad hanc celebritatem convocatis.
D. CYRILI. EPISC. ALEX. In Homil. contra Nestor
Rasga o seio da Terra, e desce, ó Musa,
À masmorra, onde os réprobos arrastam
Sempiternas, horríssonas correntes...
Que pavorosa confusão rodeia
O praguejado trono ao rei das sombras!
Seus torvos cortesãos como esbravejam
Nos sulfúreos vulcões, que o Orco exala!
A negra Inveja que alarido arranca
Das carcomidas fauces!
Veneno em borbotões, lágrimas suas,
O carão cor da noite ao monstro escalda!
A Desesperação lhe jaz ao lado,
E no raivoso coração lhe enterra
De quando em quando as lacerantes garras:
Não longe dela a túrgida Soberba
Nas mãos ostenta ainda
Abominável plano,
A cuja execução guiou, bramindo,
Rebeldes legiões, que em vão tentaram
Sacudir da cerviz o jugo eterno,
Tocar o Omnipotente,
Roubar-Lhe o raio, derribar-Lhe o sólio:
Do antigo pasto seu nunca enjoado
O abutre, que devora a Natureza,
Às Fúrias lá preside,
As indómitas Fúrias, que negrejam
Sobre os amplos degraus de ferro em brasa,
Hórrida estrada ao detestável trono.
Ali Satã, fervendo em labaredas
De raiva inextinguível
Tortuoso dragão, que tem por ceptro,
Na mão cruenta esmaga,
Retorce os olhos, que dardejam peste,
Meneia a fronte, e cum terrível brado
Ao tartáreo tumulto impõe silêncio;
Pela tórrida abóbada ribomba
O trovão repentino:
As melenas das Fúrias se arrepiam,
E as entranhas do báratro estremecem.
«Desesperadas vítimas d'Aquele,
Que reina, a meu pesar, sobre as estrelas
(Diz aos seus o infiel), vítimas tristes
Do poder, que despótico aferrolha
No cárcere da morte altas essências,
Criadas para o Céu, de onde caíram;
Inda tantos horrores não bastavam,
Inda a pesada mão, que nos oprime,
Achou leve o suplício, em que penamos!...
Oh, lembrança, pior que tantos males
No bojo abrasador contém o Inferno!
Apenas arrojados nestas furnas,
Nova e mais que terrífica vingança
Fulmina contra nós o Irresistível;
Não que mande roncar trovão medonho,
Não que maneje o rápido corisco:
Quer dar-nos outra espécie de tormento,
E sobre nossas frontes descarrega
O peso enorme de perpétua afronta.
Seu hálito, seu braço à vil matéria
Dão forma, vida, inteligência, graça,
E inefáveis delícias no Éden puro;
Bem que ao nosso furor não foi vedada
A sagaz tentação, que apodrentando
Na raiz fraca o tronco desprezível,
Faz grassar o contágio
Por todos os seus ramos e os submete
Ao jugo do pecado, à lei da morte:
De herdada corrupção contaminados
Ficam todos enfim... Mas, ah, não todos,
Que um deles escapou do estrago horrendo,
Um só deles, um só... Maria! Ó nome,
Que no império de fogo, em que domino,
Me aterras como o raio inevitável,
Que arder senti na atónita cabeça,
E cuja cicatriz inda conservo!
O númen vingador na imensa ideia
Já tinha antes dos tempos excluído
Da geral, triste herança
A Mulher portentosa,
Que intacta produziu o etéreo fruto,
O Filho redentor, que desde os astros,
Armado de pavor e omnipotência,
Nos despenhou no abismo, onde jazemos.
Resolução fatal à nossa fúria!
Ele os homens adopta, ao Pai se ofrece
Expiadora vítima do crime,
De que via infectada a humanidade.
Nas asas dos espíritos celestes
Desce ao mundo, e vestido o térreo manto
Eis começa a limar da culpa os ferros.
Espessa multidão, que ao Verbo atende,
Já principia a praguejar meu nome,
E a nova lei nas almas se lhe arreiga...
Debalde (oh, raiva!) aos ímpetos do Inferno
Os corações incrédulos cederam,
Erigindo patíbulo afrontoso,
Onde sofresse voluntária morte
Ele, a hóstia de paz, e de aliança:
Ah, seu Sangue lavou a antiga nódoa,
Que os terrestres espíritos manchara;
E que assombros, que espantos, que prodígios
O cruento espectáculo seguiram!
Súbito em dois se fez o véu do templo,
A ordem se alterou da Natureza,
Do férreo sono os mortos despertaram,
Sumiu-se a luz do Sol no horror das trevas;
E a Terra em convulsões, e o pólo em chamas
Fizeram logo autêntico o deicídio.
Hoje no livre mundo é memorado
O grão princípio do comum resgate:
Lá soam ledos cânticos festivos,
Que, voando às estrelas, acompanham
Tépidas nuvens de sabeu perfume.
Maria, abençoada entre as mulheres,
Aquele universal, canoro aplauso
Serve de objecto; os homens lhe consagram
Interna adoração: — «Tu és (exclamam)
A flor sagrada, e pura,
Em que pousou o espírito divino;
A salvação por Ti desceu ao mundo,
No eterno pensamento omnisciente
Teu ser, ó Virgem, precedeu aos evos.
Como cedro no Líbano exaltada,
Qual rosa em Jericó, Tu resplandeces
Mais que o Sol no zénite: aceita, acolhe
Em Teu piedoso ouvido humanas preces!»
Oh, desesperação! E eu pronuncio
No louvor de Maria a minha injúria!
Eu, que... «Vibrar sacrílega blasfémia
Ia o monstro infernal, mas na garganta
A voz, achando obstáculo, recua.
Por lei do Omnipotente, e enquanto freme
A danada caterva, a densa turma
No vasto horror da lôbrega morada,
(Onde tu, Maldição, resides sempre)
Os querubins no Céu, na Terra os homens
Em crebros hinos à porfia exultam.»
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