A  MINHA  ALMA  GLORIFICA  O  SENHOR
POESIA DE TEMA RELIGIOSO

Manuel Maria Barbosa du Bocage
 

À IMACULADA CONCEIÇÃO DE NOSSA SENHORA
 

Canto

 

Laus et gloria sit tibi, sancta Trinitas, quae omnes  nos ad   hanc  celebritatem  convocatis.

D. CYRILI. EPISC. ALEX. In Homil. contra Nestor

 

Rasga o seio da Terra, e desce, ó Musa,

À masmorra, onde os réprobos arrastam

Sempiternas, horríssonas correntes...

Que pavorosa confusão rodeia

O praguejado trono ao rei das sombras!

Seus torvos cortesãos como esbravejam

Nos sulfúreos vulcões, que o Orco exala!

A negra Inveja que alarido arranca

Das carcomidas fauces!

Veneno em borbotões, lágrimas suas,

O carão cor da noite ao monstro escalda!

A Desesperação lhe jaz ao lado,

E no raivoso coração lhe enterra

De quando em quando as lacerantes garras:

Não longe dela a túrgida Soberba

Nas mãos ostenta ainda

Abominável plano,

A cuja execução guiou, bramindo,

Rebeldes legiões, que em vão tentaram

Sacudir da cerviz o jugo eterno,

Tocar o Omnipotente,

Roubar-Lhe o raio, derribar-Lhe o sólio:

Do antigo pasto seu nunca enjoado

O abutre, que devora a Natureza,

Às Fúrias lá preside,

As indómitas Fúrias, que negrejam

Sobre os amplos degraus de ferro em brasa,

Hórrida estrada ao detestável trono.

Ali Satã, fervendo em labaredas

De raiva inextinguível

Tortuoso dragão, que tem por ceptro,

Na mão cruenta esmaga,

Retorce os olhos, que dardejam peste,

Meneia a fronte, e cum terrível brado

Ao tartáreo tumulto impõe silêncio;

Pela tórrida abóbada ribomba

O trovão repentino:

As melenas das Fúrias se arrepiam,

E as entranhas do báratro estremecem.

«Desesperadas vítimas d'Aquele,

Que reina, a meu pesar, sobre as estrelas

(Diz aos seus o infiel), vítimas tristes

Do poder, que despótico aferrolha

No cárcere da morte altas essências,

Criadas para o Céu, de onde caíram;

Inda tantos horrores não bastavam,

Inda a pesada mão, que nos oprime,

Achou leve o suplício, em que penamos!...

Oh, lembrança, pior que tantos males

No bojo abrasador contém o Inferno!

Apenas arrojados nestas furnas,

Nova e mais que terrífica vingança

Fulmina contra nós o Irresistível;

Não que mande roncar trovão medonho,

Não que maneje o rápido corisco:

Quer dar-nos outra espécie de tormento,

E sobre nossas frontes descarrega

O peso enorme de perpétua afronta.

Seu hálito, seu braço à vil matéria

Dão forma, vida, inteligência, graça,

E inefáveis delícias no Éden puro;

Bem que ao nosso furor não foi vedada

A sagaz tentação, que apodrentando

Na raiz fraca o tronco desprezível,

Faz grassar o contágio

Por todos os seus ramos e os submete

Ao jugo do pecado, à lei da morte:

De herdada corrupção contaminados

Ficam todos enfim... Mas, ah, não todos,

Que um deles escapou do estrago horrendo,

Um só deles, um só... Maria! Ó nome,

Que no império de fogo, em que domino,

Me aterras como o raio inevitável,

Que arder senti na atónita cabeça,

E cuja cicatriz inda conservo!

O númen vingador na imensa ideia

Já tinha antes dos tempos excluído

Da geral, triste herança

A Mulher portentosa,

Que intacta produziu o etéreo fruto,

O Filho redentor, que desde os astros,
Armado de pavor e omnipotência,

Nos despenhou no abismo, onde jazemos.

Resolução fatal à nossa fúria!

Ele os homens adopta, ao Pai se ofrece

Expiadora vítima do crime,

De que via infectada a humanidade.
Nas asas dos espíritos celestes

Desce ao mundo, e vestido o térreo manto

Eis começa a limar da culpa os ferros.

Espessa multidão, que ao Verbo atende,

Já principia a praguejar meu nome,

E a nova lei nas almas se lhe arreiga...

Debalde (oh, raiva!) aos ímpetos do Inferno

Os corações incrédulos cederam,

Erigindo patíbulo afrontoso,

Onde sofresse voluntária morte

Ele, a hóstia de paz, e de aliança:

Ah, seu Sangue lavou a antiga nódoa,

Que os terrestres espíritos manchara;

E que assombros, que espantos, que prodígios

O cruento espectáculo seguiram!

Súbito em dois se fez o véu do templo,

A ordem se alterou da Natureza,

Do férreo sono os mortos despertaram,

Sumiu-se a luz do Sol no horror das trevas;

E a Terra em convulsões, e o pólo em chamas

Fizeram logo autêntico o deicídio.

Hoje no livre mundo é memorado

O grão princípio do comum resgate:

Lá soam ledos cânticos festivos,

Que, voando às estrelas, acompanham

Tépidas nuvens de sabeu perfume.

Maria, abençoada entre as mulheres,

Aquele universal, canoro aplauso

Serve de objecto; os homens lhe consagram

Interna adoração: — «Tu és (exclamam)

A flor sagrada, e pura,

Em que pousou o espírito divino;

A salvação por Ti desceu ao mundo,

No eterno pensamento omnisciente

Teu ser, ó Virgem, precedeu aos evos.

Como cedro no Líbano exaltada,

Qual rosa em Jericó, Tu resplandeces

Mais que o Sol no zénite: aceita, acolhe

Em Teu piedoso ouvido humanas preces!»

Oh, desesperação! E eu pronuncio

No louvor de Maria a minha injúria!

Eu, que... «Vibrar sacrílega blasfémia

Ia o monstro infernal, mas na garganta

A voz, achando obstáculo, recua.

Por lei do Omnipotente, e enquanto freme

A danada caterva, a densa turma

No vasto horror da lôbrega morada,

(Onde tu, Maldição, resides sempre)

Os querubins no Céu, na Terra os homens

Em crebros hinos à porfia exultam.»

 

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